terça-feira, 29 de julho de 2008

A grande verdade


Em um cenário de pobreza vivia Valeriano, sua vida resumia-se a cuidar da pequena plantação de onde tirava o suficiente apenas para se alimentar.

Fazia duas semanas que a tragédia havia ocorrido. Era um dia frio, chuvoso e Valeriano, como de costume, estava cuidando à horta. De repente viu ao longe sete soldados do Rei se aproximando com espadas a punho. Escondeu-se em meio à pastagem alta e dali viu invadirem sua casa e escutou gritos desesperados de sua família. Valeriano já sabia o que estava acontecendo, havia rumores que seu pai Ciprus era um feiticeiro e estava perto de desvendar “a grande verdade”, isso provavelmente despertou a ira do Rei. Ninguém nunca soube explicar o que seria essa tal “grande verdade”, porém o Rei sempre achou melhor tirar de seu caminho qualquer pessoa que pudesse colocar em risco seu reinado absoluto.

Com frio, fome e tentando de todas as formas, sobreviver às recordações daquele dia infeliz, Valeriano vestiu a longa capa negra que seu pai costumava usar e saiu para dar uma volta pela região. Andou em direção a um morro, lá via todo vilarejo pobre e o enorme castelo ao fundo. Sentou-se numa pedra e ficou ali por horas. Só, só com seus estúpidos pensamentos. Afinal, iria pensar em quê? Ali do alto só enxergava pessoas morrendo de fome, ódio, desesperança. Nunca desejou ou fez o mal. Por que a vida estava sendo tão cruel com ele? Envolto nesses pensamentos acabou adormecendo ali mesmo.

Sonhou que estava em um lugar fechado, escuro, vazio, gélido. Enxergava ao longe a figura de seu pai vestindo sua longa capa negra, sua aparência era boa e o velho parecia desenhar algo no ar. Valeriano tentava correr para alcançá-lo, mas vultos agarravam seus pés e ele jamais conseguia chegar até ele. Seu pai mostrava-se muito calmo, parecia que tinha algo muito importante para dizer, mas entendia que o certo seria deixar seu filho descobrir sozinho. Valeriano acordou, levantou-se assustado e correu de volta para sua casa. Relembrava de cada detalhe do sonho. O que seu pai queria lhe dizer? Ao retirar a capa negra notou algo diferente, havia alguma coisa dentro do forro daquela capa. Valeriano resolveu verificar o que era, retirou a costura cuidadosamente e lá encontrou um papel envelhecido pelo tempo que continha algumas palavras e um desenho que não conseguia identificar, pois nunca havia visto nada parecido.

“Na escuridão a luz brilha mais forte
Entenda que vida segue com a morte
Se o meu pesadelo contém uma negra veste
É porque luto com a espada celeste
A grande verdade será revelada

Assim que um coração puro encontrar a espada”

Observação: Imagem acima, desenho de Jouber D. Cunha , feito especialmente para o RPG.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Os olhos de Cristal


Sentada em sua cama, a princesa Cristal põe a ditar para seu escriba O Livro dos Sonhos, em que retratava ora em prosa, ora em verso as imagens que via a cada noite mal dormida. Curiosamente eram formas que ela não compreendia, pois Cristal fora batizada com esse nome por conta da falsa imagem que deu ao seu pai, o rei Palermo, quando a viu nascer. Encantado com a beleza da menina, de cabelos loiros quase brancos, e olhos igualmente claros como o cristal, o pai orgulhoso não pensou duas vezes em dar-lhe esse nome.

O rei severo, com o tempo passou a perceber que algo estava errado com os olhos da menina, que não encaravam o seu rosto barbudo, quando este a pegava no colo para brincar. Intrigado, um dia colocou a filha diante da janela de seu quarto, numa manhã de sol forte. E ai descobriu que a princesa, tão bela, não possuía visão. Cega de nascença, naquele reino jamais poderia enxergar o que se passava a sua volta. O que seria lamentável para uma nobre.

Então, o rei confinou a menina em uma das torres do castelo, como que presa numa bolha, até chegar aos 16 anos, quando passou a ser cortejada por príncipes de reinos distantes, que a viam apenas de longe, maravilhados por sua beleza, mas intrigados por ela nunca olhar nos olhos de alguém... Ninguém naquele reino sabia de sua cegueira, exceto o rei, a rainha e alguns serviçais...

A maioria dos pretendentes, diante do insucesso de conhecê-la de frente, desistia do pleito e retornava para casa, e os que insistiam junto ao rei para conhecer Cristal pessoalmente, só podiam assim o fazer mediante uma condição: jamais encarar seu rosto, antes do casamento. Ninguém aceitava tal proposta e todos saiam indignados com a crueldade do rei Palermo. Dois longos anos se passaram... Outros pretendentes vieram, e todos tiveram o mesmo destino...

A rainha de nome Esperança, em decorrência do destino de sua filha e a truculência do rei, passou a ser chamada pelos seus súditos de Tristeza, vivendo confinada na outra torre, aguardando o dia que os sonhos da filha se tornassem realidade naquele reino de estranhos. Alguém que Cristal via em sonho todas as noites, e que viria libertá-las daquela prisão. A princesa tinha o dom de, apesar de não enxergar nada, conhecer as pessoas ao seu redor apenas pelo tom de voz e o jeito de caminhar. Imaginava seus traços, e quase sempre acertava na índole (boa ou má) de cada um, sabendo separar o joio do trigo, coisa que o rei Palermo, sempre rodeado de conselheiros, não possuía tal visão...

Por ironia do destino, naquele reino de estranhos, existia um bom homem, com medonha aparência, que encantava a todos com seus versos livres, mas que afugentava a todos que o conheciam pessoalmente. Um homem sem família, que vivia encapuzado, com um olho vazado por um duelo quando jovem, e que naqueles tempos, só saia de seu quarto, no interior do castelo, ao anoitecer, para não encontrar ninguém. Predileto do rei Palermo por conta de seus versos encarados como profecias, o Poeta vivia sozinho, recolhido em seu mundo interior. E nele tinha devaneios por conta do amor que depositava na princesa Cristal, que toda noite quando vinha à janela, emitia um misterioso brilho nos olhos, fazendo o Poeta se esconder entre as árvores, com medo de ser visto ali na espreita. Quando voltava para seu quarto, um pequeno poema ia nascendo em seu interior, na mesma medida que a princesa quando deitava, passava a sonhar com o homem que escrevia versos tão belos, quase profecias em que ela queria a todo custo acreditar...

Observação: Desenho acima, criado por Jouber D. Cunha, especialmente para o RPG.

sábado, 19 de julho de 2008

22 badaladas do Castelo de Messiter

Alguns instantes antes das 22 badaladas do Castelo de Messiter, o pequeno menino encontrava-se atrás de um arbusto aos fundos do Castelo. A noite estava calma, as duas luas pareciam confrontar-se no céu e os escudos de fogo passeavam tranqüilos cortando os desenhos das estrelas e das poucas nuvens que lá figuravam em um luar tranqüilo e assustador.
Dentro do aposento secreto a bola de cristal rolava de um lado para outro sem parar, passara assim desde a hora em que o pequeno a deixara sozinha, o animalzinho de cinco patas lampejava a volta da bola, brincava friamente e sem parar de balançar a moça dentro da bola. Não se sabe de onde surgiu, e a moça estava cansada e exausta de tantas cabeças para baixo, de andar de um lado para outro, de ver as paredes, a cama, os armários e o teto contrastando com o tapete amarelo, e rodava, rodava, rodava sem parar.
Badaladas anunciavam às 22 horas ao reino, como combinado com a filha da cozinheira, ela apareceu por um buraco ao lado do arbusto que o menino estava, e o chamou com rapidez, pois estava com medo, naquela noite, dos guardas. O menino pôs-se a rapidez e em poucos instantes passavam vagarosamente pelo túnel debaixo do Castelo. A menina contava ao seu amiguinho que o Mago havia posto o Castelo inteiro em estado de alerta com o sumiço de sua bola de cristal, os guardas tinham ordens de quando encontrar a bola, lhe taparem o mais rápido, pois quem a olhasse ficaria cego na mesma hora, e mais, quem estava com a bola seria sacrificado na masmorra do meio do bosque. Ao chegar no aposento secreto, o menino entrou e a menina ficou na espreita, escondida atrás da parede que dava ao túnel. A primeira coisa que ele olhou ao chegar no quarto foi para o canto onde havia deixado a bola de cristal, mas ela não estava ali, então, começou a procurá-la em todos os cantos do quarto, em pouco tempo escutou um barulho estranho debaixo da cama, era a bola de cristal, ele pegou-a e colocou sobre a cama, a moça estava desmaiada e com sinais de muito cansaço em seu semblante. Ele aguardou um pouco, tossiu duas ou três vezes e nada da moça voltar a si, pensou que estava morta por um instante, mas em seguida ela acordou e tomou um enorme susto com os olhos do menino grudados a bola de cristal.
Em um pequeno relance ele percebeu que algo havia se mexido no canto do aposento, e estava atrás do biombo o que ele vira passar correndo, pegou a bola nas mãos e suando bastante arrancou o biombo do lugar e não encontrou nada. A moça, no entanto, não estava muito satisfeita com a atitude do garoto que nem a perguntou se estava bem, ou o que havia acontecido, por sua vez ele olhava novamente para ela e a questionava:
- O que fizestes? Qual o problema? Como fostes parar ali?
Ela responde:
- Um animal peludo e estranho que nunca vi em minha vida, apareceu e começou a jogar a bola para todos os lados, comecei a me sentir mal, muito tonta e apaguei. Não o vi mais depois que desmaiei.
O menino ficou surpreso com o relato da moça, pois seu avô fora por muitos anos o Soldado do reino, mas a idade chegou e suas forças não eram mais as mesmas, na sua velhice o ex-soldado contava muitas histórias sobre o reino ao garoto, no momento em que ela relatou o que acontecera, ele lembrou de uma história que seu avô contava, a qual era a sua preferida, em que a feitiçaria de um povo muito antigo havia condenado algumas moças do reino a adorarem a lua e a esquecer dos amores de suas vidas, a cantiga que o velho cantava veio a cabeça do menino como um passe de mágica...

Moças, moças, moças...
São todas as moças,
Viram bichos muito sapecas,
E não largam de seus amores,
Eles pensam que são de estimação,
Mas as moças que estimam seu coração.

Após algum tempo ele escutou uma batida na porta, era sua amiguinha, ele abriu a porta e ela mandou que fossem embora, havia escutado um barulho no corredor, um pouco distante, ele pôs a bola de cristal no mesmo canto que antes e falou a moça que retornaria no dia seguinte e que arrumaria uma forma de ajudá-la. Ela por sua vez pareceu triste, e apenas deu-se com os ombros. Eles saíram do aposento e correram para a passagem no corredor, ficaram um pouco a espreita, e avistaram o Soldado com sua espada e mais dois guardas...

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O livro dos dias

Havia naquele reino de estranhos um livro misterioso, escrito por um poeta, tido por nobres e plebeus com um vidente, a frente de seu tempo, pela curiosa coincidência entre o que escrevia e o que acontecia ao seu redor. Seus versos eram tidos como previsões, profecias. Sua escrita enigmática seria num futuro distante tida como reveladora. Estudiosos se debruçariam sobre ela como se a mesma tivesse um código secreto, que ao ser desvendado poderia conter segredos do próprio tempo futuro.

No entanto, o poeta tinha inspirações, fruto não de visões mas de emoções que sentia sobre o próprio reino e seus habitantes aprisionados pelo tempo. Escrevia em couro seco de cabra com pena de ganso e corante de plantas. Escrevia ora a noite, ora de dia, sobre o futuro do presente, sobre o presente do futuro e sobre o futuro do futuro. Tempos verbais e não siderais. Não tinha a pretensão de ser profeta, apenas um poeta. As palavras dançavam em sua mente, mas não era vidente...

O bispo temia sua escrita, ameaçava-o seguidamente com a fogueira. Mas o poeta dizia que seus versos eram para o rei, que vaidoso, o tinha como seu artista preferido, dando-lhe proteção e abrigo dentro das muralhas do castelo.

O poeta reunia diversos poemas, que batizara de O Livro dos Dias, fruto de suas vivências, observações e opiniões sobre o reino e seus habitantes... Ainda não tinham inventado a imprensa. A Bíblia ainda era copiada página por página por padres copistas. Toda vez que tinha uma inspiração, recolhia-se aos seus aposentos humildes, para ali não esquecer as palavras que o vento lhe soprava nos ouvidos...

Eu tive um sonho
em que subia numa pequena árvore,
a pequena árvore do sonhos
e de lá do alto, tudo era encantado,
como um quarto crescente,
onde o mundo pequeno tornava-se imenso...
As palavras caminhavam sobre a linha do horizonte...
as gotas da chuva tornavam-se puro cristal,
o mal não tinha morada e a amada,
vivia enclausurada em seu quadrante solar...
E a morte vivia longe, lá no fim do mundo,
Porém podia estar a qualquer momento
Bem mais próxima do que pensamos;
Ao lado da ponte, onde mora o coração valente...


Terminados os versos, o poeta adormeceu em seu catre. Na manhã seguinte, foi acordado às pressas pelo chefe da guarda, que o conduziu a presença do rei. O poeta carregou consigo os versos que tinha escrito no dia anterior, para dar de presente ao rei, inspirado na princesa Cristal, batizada com esse nome por conta do brilho de seus olhos.

O rei abatido, inconsolável, mortificado contou ao poeta sobre a morte de seu filho preferido, o príncipe herdeiro, próximo à ponte elevadiça, quando voltava de uma caçada onde fora a caça ao invés do caçador, haja vista ter seu peito traspassado por uma flecha mortal... O rei vendo as mãos trêmulas do poeta, segurando o couro de cabra avermelhado pela tintura dos versos e suor das próprias mãos, pediu com rigor para ver o que estava escrito nele. E ao ler aquele poema, começou para o poeta sua dupla sina... De profeta do rei e poeta encantado pela princesa Cristal, prometida a um nobre de posto, mas não de sentimento, doutro reino distante... Não podia contar que o quadrante solar que ele se referia nos versos era justamente a janela do quarto da princesa, que se iluminava cada vez que ele a via, ao subir na árvore próxima ao local. Um poeta, naquele reino, era condenado a fazer somente profecias ao invés de escrever poesias, sob pena de ser aprisionado como outros tantos na masmorra do castelo... O livro dos dias , para sua glória e sina, seria lido de agora em diante, e através dos tempos, de forma mística e sobrenatural...

Pequeno ladrão de frutas?

Viu que ela tinha pulsos fortes,
Mas não aguentava mais aquelas cordas!
Seu corpo já estava pesado demais,
E a qualquer momento não resistiria mais o que passava,
Sem saber o que fazer ela adormeceu!

Na manhã seguinte, não muito acordada, ela sentiu algo estranho, pensou que estivesse nas nuvens, ou voando pelos ares em uma corrente de ar suave, onde o cheiro que sentia eram de belas rosas formosas, enfim abriu os olhos e não acreditou no que via e sentia, não estava mais pendurada naquela que seria o seu fim, mas seus pulsos continuavam amarrados para cima, mas desta vez estava em uma cama, embora soubesse que permaneceria presa e aquelas condições que estava era mais um milagre em sua vida, sentiu-se aliviada e só em seus devaneios...

Não mais que alguns momentos depois do sol bater-lhe de frente ao rosto, chega o pequeno ladrão de frutas. Ele escondera a bela moça em um aposento secreto do Castelo, com ajuda de uma menina, que tinha lá seus onze anos, era uma travessa e filha de uma cozinheira das majestades.

Ao lado da bola de cristal estava um saquinho vermelho, costurado a mão, com um pó que reluzia com a luz, o menino por sua vez, ao ver a bela moça dentro da bola de cristal, pegou um pouco do pó e disse algumas palavras que escutou uns dias atrás espiando as moças de preto no meio do bosque e pensou em aliviar sua dor, e naquele momento descobriu que o pó era mágico.

Entrou com pressa no quarto e ao ver que a moça havia percebido sua presença ali, foi logo pedindo-lhe desculpas pelo que se passava, mas que sabia, se ela estava naquelas condições por bons motivos não seriam. Ela envergonhada, o agradeceu por tê-la salvo, pois achava que morreria se continuasse pendurada como antes, e que no momento certo revelaria o motivo de sua prisão dentro daquela bola de cristal.

O menino deixou a bola de cristal em um canto do quarto, falou para ela que ficasse calma e a noite daria um jeito de sua amiguinha colocá-lo para dentro do Castelo, assim poderiam conversar mais, e até a noite decidiria o que poderia ser feito. A menina o esperava na porta do quarto e quando saiu o avisou que os guardas estavam atrás da bola de cristal que havia sumido a noite, para que tomasse cuidado ao voltar durante a noite e que lhe esperava logo que soasse as 22 badaladas no Castelo.

A rainha


Do interior desse castelo opaco emerge este novo onde reino em silêncio e vertigem: o quarto de cristal e memórias do infinito em que habito só e cinza. Não faz muito vi pela janela central a figura de um homem que se desdesenhava no tempo. Um soldado de nossa armada, certamente, outro infeliz a quem as lanças não demoram levar... Desde um ontem, tramado pelas linhas do invisível em meu destino, ela vem e me visita noite após noite para em seguida apagar-se no ar, deixando em meu espírito essa saudade arranhada.

Mil luas gêmeas rezei inteira e implorei o perdão dessa louca andarilha, que insiste em me perseguir nesse mundo e em outros em que surjo nua e sem explicações. Não compreendo o quando nem o porquê de meu acesso a esses domínios tão distantes do meu, mas começo a me acostumar. Um quarto minguante ou mesmo os solstícios me carregam fundo para uma dessas escusas dimensões que abrigam o nosso encontro.

Já quis com força sair daqui e dançar novamente, descalça sobre a areia clara, e com a alma leve atada à minha ancestralidade legítima. Uma viagem mais, implorei insana ao ar noites a fio. Por mim e por ela, cantei alto e sussurei e escrevi nas paredes e no meu próprio corpo as palavras que não me saem do sangue

Ó Céu da noite crua
As luas infinitas em mágica
Somos todas mulheres de luz
Com teu manto abençoe nossas almas
E nossos corações sofridos
Aceite nossos cantos
Toda a fé e esperança que depositamos
Somos todas suas ó Luar


Vazio e desistência. A mim que já chamaram Esperança hoje alcunham Tristeza. Decidi que não me abala a ingorância dos comuns, especialmente porque descobri em mim portas insuspeitadas, que inauguram liberdades acolhedoras e justas a quem tem olhos humanos cansados desse mundo.

Volto à janela com a insistência descuidada do desalento e, novamente, lá está ele. Parece que guarda o desajuste dos meus passos. Mal sabe, pobre diabo, dos poderes que tem. Bastaria intuir a minha proximidade e nele estaria eu, disposta ao sorriso, instalada no campo aberto que é o pensamento desse homem simples e transparente como as paredes que me cercam.

Assim tenho sido desde que aprendi essa estranha maneira de fugir. O solstício, que marcou a chegada da estação do trigo novo, lançou-me exatamente onde juro que a vi pela última vez: naquele sonho branco.

Observação: Imagem acima, ilustração feita especialmente para o RPG, por Jouber D. Cunha.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

As torres de areia


Próximo ao castelo de Messiter havia uma praia maldita, por conta de seus inúmeros naufrágios. Pela costa se percebia restos de barcos que não sobreviveram às borrascas e bancos de areia. Por ali, o fim do mundo era apenas a ante-sala do inferno.
Em um dia ventoso como outro qualquer, um pescador solitário passeava pela praia deserta, procurando restos de embarcações piratas que o mar trazia à praia. Já achara certa vez uma moeda de ouro, um brinco de pérola e um estranho espelho que mostrava imagens distorcidas e sons guturais, que não deviam ser daquele mundo.
No meio do caminho ensolarado achou uma pequena bola de cristal com um diminuto boneco em forma de gente dentro, indo e vindo sem sair do lugar, aprisionado na água prateada em seu interior.
Uma mulher alta e bela, toda vestida de branco, vindo do nada, apareceu em sua direção, e ele custou a perceber, vidrado que estava naquela pequena bola de cristal.
Num breve instante o mar silenciou. O vento sumiu. O tempo parou. Tudo estava mudado. Um vácuo sobrenatural tomou conta daquela praia.
Lá adiante, o pescador finalmente percebeu a aproximação da mulher toda vestida de branco, bem alta, vindo em sua direção. Ele continuou indo e a mulher vindo, sem a distância se alterar. Quando ele quis voltar, tropeçou nas pernas. O vilarejo em que morava manteve-se distante. E bem diante de seus pés, um pequeno castelo de areia, réplica idêntica do castelo de Messiter, em escala bem menor, talvez 1:1000. E ali, dentro de uma das torres, uma pequena peça de xadrez. A rainha!
Uma tristeza sem motivo tomou conta de seu ser, enquanto a mulher de branco continuava tranqüilamente em seu encalço, caminhando sem sair do lugar. Ele, o aldeão que de vez em quando virava pescador, pensou ser algo sobrenatural, ou um pesadelo muito real, mas o eclipse do sol mudou sua opinião.
Ao olhar para o céu, descobriu algo como um olho escuro e gigante de um menino brincando com sua bola de cristal, correndo por uma praia deserta, feliz por ter encontrado aquele presente caído do céu, enquanto uma mulher de branco, caminhava em sua direção... Gelou de medo ao ver que próxima a ponta elevadiça do castelo de areia tinha um boneco muito parecido com seus trajes. E nos arredores daquela pequena construção de areia e sonho, outras figuras diminutas, entre luzes e sombras estavam plantadas.
Coincidentemente, no mesmo instante, um menino, pequeno ladrão de frutas, fugindo dos guardas do rei, caiu num poço profundo, atrás do castelo, e quando voltou a si, estava num subterrâneo labirinto. Depois de horas e horas - e naquele local o tempo custava muito a passar -, encontrou um túnel que levava a um portão. Estava entreaberto, e ali, mil e um apetrechos de alquimista numa câmara secreta. Sobre a mesa, uma pequena bola de cristal. E quando olhou em seu interior, teve uma visão abissal...

O poço

Após ter acordado rapidamente naquela manhã nublada de domingo foi direto andar pelas várias estradinhas do Reino. Não que fosse um lugar novo para aquele soldado...velho soldado abatido, apático depois de tantas e tantas guerras vencidas. Ou não? Aquele Reinado mais parecia um labirinto. Era composto de árvores, pequenas casinhas e uma infinidade de pessoas correndo para todos os lados. Tempos difíceis...todos tinham que trabalhar.
O soldado pensava no bicho. Naquele pobre bicho que dormira em seu quarto na noite passada. Resolveu parar um pouco. Sentou-se debaixo de uma árvore e os olhos começaram a ficar semi-cerrados. Não entendera direito por que estava com tanto sono. Realidade e devaneio misturavam-se agora. A imagem das moças em seu culto misterioso, o fato de saber da existência de uma rainha que nunca vira em toda a sua vida. Rapidamente sim, mas não com a mesma profundidade que vira a jovem de preto. Era demais. Era encantamento, era medo, era um poço fundo de mistério.
Resolveu prosseguir com a caminhada, um pouco sem saber o que estava procurando exatamente. Sim, estão todos perdidos ainda nessa história que nasce num passe mágico de plim. Inclusive, o soldado. Eis que o homem anda mais alguns metros e encontra um poço tão fundo que parece não ter fim.
Ele olha para baixo...estranha os ruídos que emanam daquele buraco negro e fétido. Escuta passos, sim deveriam ser passos, se não fossem passos o que mais seria? Mas os pés não pisavam a grama. Eram como grandes chutes na água. Percebeu naquele exato momento que havia alguém DENTRO daquele poço.
Como quem quer fugir da realidade, ele esfrega os olhos. Pisca. Pisca novamente. Mão no olho com mais força, quer acordar, acordar logo. Não é sonho. Ele escuta e pode até sentir que alguém pisa fundo no fundo do poço.
Tem certeza que ali, esconde-se ou simplesmente caiu alguém. Precisa pedir ajuda e rápido. E nessas horas só tem uma pessoa em todo o reino que poderia o ajudar. O mago Sidelar...

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A Espada

De nada adiantava ao soldado voltar ao castelo sem sua espada, esperou alguns instantes e voltou para o bosque, segurando a sua cruz com força, tentou fazer o mesmo caminho que percorreu durante o susto, andou... andou... e há poucos metros avistou uma luz no chão, foi chegando cada vez mais perto e avistou sua espada, pegou-a e voltou ao castelo. Deparou-se novamente com a figura da Rainha na janela de seu quarto de cristal, contemplou-a por mais um momento e dirigiu-se para dentro do castelo.
Ao chegar em seu aposento sente que há algo de errado, mas não pensa muito nisto e foi deitar em sua cama. Ao fechar os olhos sentiu que algo lhe espiava, entreabriu o olho direito e enxergou dois olhos estalados e olhando fixamente para ele, mas quando abriu os olhos não os viu mais. Levantou-se rapidamente e arrancou o biombo que ficava no canto do quarto, não havia nada, olhou atrás da cortina, e não encontrou nada, resolveu então perguntar quem estava lá, novamente nenhum sinal. Voltou para a cama e ao deitar sentiu algo estranho mexendo embaixo do lençol, levantou e viu os olhos que o espiavam, tratava-se de um animalzinho muito comum naquelas voltas do reino, e sempre procurava abrigo dentro do castelo, mas o soldado sempre o colocava para fora, ele era peludo com dois olhos bem grandes, um focinho redondo e orelhinhas em pé, tinha cinco patas, um tamanho de dois palmos e não causava mal nenhum a ninguém, apenas alimentava-se das folhas e flores das plantas da floresta. Aquela noite o soldado deixou o coitado dormir em seu quarto, mas pegou uma almofada e colocou para o bichinho dormir ao lado de sua cama.
No dia seguinte acordou as seis badaladas do contador de horas do reino. Olhou para seu hóspede e ficou com pena de colocá-lo aquela hora para fora do castelo, aprontou-se, pegou sua espada e foi para a guarda tomar o café da manhã com seus companheiros. Sentou-se com eles, mas estava quieto, não olhava para ninguém, estava com o pensamento longe e nem tomou seu café. Rondou o castelo para ver se estava tudo dentro dos seus parâmetros normais, olhou para o quarto de cristal e não viu seu pensamento, retornou ao seu aposento e encontrou o animalzinho dormindo em sua cama, com a cabeça em seu travesseiro, exclamou:
- Acorda animal! Acorda animal! Não ficarás aqui nem uma badalada mais!
O animal assustado olhou firme para o soldado, como se entendesse o que ele estava dizendo e pulou da cama. Correu para trás do biombo e sumiu novamente, o soldado procurou e não achou nenhum rastro do animal.