O bispo branco correu feito o vento em direção aos campos de trigo até perder o fôlego. Deixou-se tombar de todo comprimento e peso, e no chão permaneceu por horas, o rosto enfiado no pasto, como uma minhoca que procura abrigo. Na cabeça, imagens formavam-se e atropelavam-se, misturando presente e passado e possíveis pedaços de futuro, num ritmo tão desconcertante que definitivamente o desconcertou.
Perdeu a noção do tempo, a consciência do corpo, e o fio da realidade. Invadiu o absurdo com força, porque tinha medo do porvir e porque rejeitava essa habilidade de antever o logo. Desde a infância sentia assim o desajuste: era estranho além da média dos estranhos familiares. Aos sete anos pressentiu a chegada de uma nuvem de gafanhotos que devastou as lavouras da região. Aos 14, intuiu a investida de uma tribo Atrixar que matou um terço da população do vilarejo, sem poupar sequer as crianças. Mais tarde, aos 21, percebeu a estranha relação de dores agudas na cabeça, bem no centro da testa, com a proximidade da epidemia Marja, que dizimou famílias inteiras alastrada pela água que abastecia o vilarejo.
Curiosamente, assim foi, de sete em sete, encerrando e recomeçando ciclos de visões aterradoras. Escolheu a vida religiosa para se distanciar dos olhos dos outros, pois temia o poder da incompreensão e precisava encontrar a fé, ou, pelo menos, algumas respostas. Os fragmentos do tempo e de histórias desconexas jamais deixaram de perseguí-lo, mesmo perto do Deus de então, e ao fim de sete tempos certamente nova destruição viria.
Naquele mês findava o sexto ciclo. O bispo, branco, correu feito o vento em direção aos campos de trigo e, na medida em que avançava entre o verde amarelecido do campo, enveredava pelo labirinto da própria mente, forjando uma clausura particular, que o abrigaria do destino incurável, esse de ver o tempo, assim, sem freios. Sentiu a pele do rosto roçar a grama e sorriu nervosamente, pediu ao seu Deus que desse fim àquela vida torta e infeliz. E mais uma vez viu: viu o crucifixo de prata que trazia preso ao pescoço pendendo até o nível do umbigo, por dentro do hábito, ganhar um brilho incomum e erguer-se acima da sua cabeça. Viu-o reluzir e cravar fundo na ausência de cabelos, "para isso servia a calvície", pensou, "veio se armando aos poucos para receber a ponta fria e prateada que me mostraria a redenção", e sorriu.
O verde amarelecido do campo de trigo ao redor do bispo encheu-se de pingos vermelhos e guardou o santo homem durante os meses que se seguiram. Foram meses de silêncio e de esquecimento, tempo em que os pássaros de asas negras estiveram encarregados de desconstituir o corpo e as vestes. Sobrou o cordão de prata com o crucifixo da ordem entre ossos e carne decomposta. O sétimo tempo já havia começado.
sábado, 27 de setembro de 2008
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Um comentário:
Oi, Déia. Bah, miga a cada post no RPG, com surgimento de personagens ou aprofundamento dos já existentes demonstra a complexidade e a riqueza da história se desdobrando sobre si mesma. A turma tem caprichado nas intervenções, e até vale a pena esperar a contribuição de cada um. Muito bom o teu texto. Adorei a questão do sete! hehehehehehe, Abração, Zé.
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